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terça-feira, 10 de agosto de 2021

Sofisticada artesania

 

Esmo Poemas. Paulo Sergio Viana. 1 ed. Lorena -SP; Brasília: Agência Comunica, 2020.


Somente hoje, depois de cuidadosa releitura, tive coragem para tentar falar do livro de poesia que ganhei de presente do autor, poeta e amigo, Paulo Sergio Viana, em novembro de 2020.

Mesmo fechado sobre a mesinha de cabeceira, dava para ouvir a música dos poemas.

Era só abrir uma página a esmo, e o inefável encantamento acontecia. Eu podia ouvir o verde do silêncio dos pensamentos inapreensíveis em versos tecidos com esmero, esmeril de um Poeta que sabe polir as palavras, pedras preciosas, com reverência, delicadeza e alguma melancolia.

O verso está cansado de ser lido.

Deixa-o soar em voo

dentro de ti.

E lá se vão como pássaros boêmios poemas suaves, sonetos imponentes, trovas brejeiras, floridas aldravias...  Então a saudade de Lisboa nos revisita.

Mas tudo muito bem infiltrado de doce filosofia porque

a vida é uma estranha

ilusão chamada tempo.

O livro é Poesia toda inteira como os sonhos do Poeta.

Lá dentro o homem é um enigma.


Maria Nazaré Laroca

Juiz de Fora, 10/08/2021


sábado, 31 de julho de 2021

QUASE-RESENHA


 

QUASE-RESENHA

Maria Nazaré Laroca


(Percurso às avessas: Dorvalino semimorre. Paulo Pereira Nascentes: Guaratinguetá, SP: Penalux, 2021.)

Conto-novela-poema-o-que-fosse: mas que o é!  Inexplicável DNA!            

Apoteose dos sem-gênero literário!  Prepare-se o leitor para essa viagem sem volta!

Desaprenda! Desprograme-se!  Carnavalização da textualidade!     

Miolo narrativo tipo fio condutor dos poemas é que não.                                     

“Teu olhar descabelado

verticaliza

horizontes marinhos

Romance às avessas: metarromance em trânsito de poemas on the road...

Uma narrativa macunaímica, na corda bamba de acrobacias lexicais, semânticas: acontecências, traquinagens místico-eróticas de Dorvalino Mendes, ou Dorva, ou Lino!

Não vem para ludibriar o leitor incauto, mas ludi-brilhar com borbulhante turbilhão insone de ideias indisciplinadas.

É o romance do grande poeta Paulo Nascentes; são nascentes transbordantes de irreverência, humor, rebeldia, delírio.

Uma biblioteca de magia em tempo real: o novelo narrativo é turbulento. Narrativa em (des)construção, deslumbrando o leitor perplexo, preso no enredo desse universo paralelo: um videogame verbal costurado de filosofia na montanha russa do prazer inefável do subterrâneo das palavras, nos bastidores das metáforas e metonímias! Vertigem abissal da semiótica em delírio metapoético.

Eu também vivi o tempo da ditadura; difícil dar aula de literatura!

Tromba d’água, Poemance na voz do outro grande Paulo, o Sergio Viana.

Dançando com as palavras a música da epifania: imanência e transcendência;

reverência ao Sagrado Templo-Corpo. Poesia cósmica apesar da tortura.

Om! Namaste, Aurora interior! Apertou a tecla print do seu ser.

Borboleta encantada: Dorvalino somos todos nós!

 

 

 

 


quinta-feira, 8 de abril de 2021

Odisseu na Pauliceia; julho de 2012.

 


Odisseu na Pauliceia; julho de 2012

Há dez anos, Odisseu Ulisses perambula pelas ruas de São Paulo. Seu retorno ao paraíso natal, na Bahia de todos os santos e deuses, é cada vez mais improvável. Itacaré foi a cidade que abandonara sob a fúria dos orixás; exceto a de Iemanjá - mãe de todas as forças da natureza, rainha das águas salgadas – sua deusa protetora.

Odisseu é também filho de Obaluaê: oba (rei) - oluwô (senhor) - ayiê (terra), isto é, “rei, senhor da Terra”. Este é o caçador, lutador, que foi criado por Iemanjá. Daí a relação de carinho entre o guerreiro Odisseu Ulisses e Iemanjá: Divindade de olhos glaucos como as ondas do mar de sua terra.

Odisseu Ulisses da Silva. Poeta sem idade, professor de literatura, que prefere ser chamado só de Ulisses pelos frequentadores de um bar da Rua Augusta, onde faz um extra como garçom, na noite paulistana. Olhar perdido, afável de gestos e palavras, cabelos desarrumados sobre um sorriso que ilumina o rosto barbudo.

Era poeta, no entanto, jamais conseguira publicar seu livro de poesia, grosso caderno que carregava na mochila para rabiscar versos dentro do metrô. Lá dentro, o mundo se resumia a uma avalanche de pernas e mãos e olhos cravados nas telinhas dos celulares.

Ele era mais um invisível na multidão enlouquecida. Por isso preferia as imagens das palavras que criava ao sabor de sua vontade. Prazer inenarrável de degustá-las, ah...fazia amor com as palavras...Tinha orgasmos metafóricos. Beijava a semântica de lábios, sem cobrança; acariciava o significante seios oferecidos, em volúpia lexical. E gestava poemas suburbanos em secreta alegria.

Gostava de reler os versos de Nietszsche sobre a felicidade. Não acredito no eterno retorno, assobiava quase feliz:

“Desde que me cansei de procurar, aprendi a encontrar; desde que o vento começou a soprar-me na face, velejo com todos os ventos.”

Um dia, Ulisses sonhou com a mãe. Ela o acusava de tê-la abandonado; morrera de saudade e tristeza. Os dois caminharam em silêncio por veredas sombrias e vales pavimentados de lama, naquela espécie de purgatório. Ulisses acordou tarde de manhã, com o sol lambendo-lhe os olhos e o coração; chorava de remorso e culpa.

Era culpa de Obaluaê, que orquestrava seu cotidiano; regente de suas dores. Nesse dia, andou   lembrar-se da juventude, do tempo quando também descera ao Hades dos porões da ditadura, quando fora preso e torturado por fazer parte de um grupo literário de esquerda: ele e os companheiros reverenciavam o filósofo húngaro Georg LuKács e estudavam o seu livro Introdução a uma estética marxista como a uma bíblia. Quanta discussão amiga em torno dos conceitos de arte, política e literatura, naquelas tardes cinzentas! Tudo devidamente incensado pela fumaça do elegante cachimbo do líder do grupo.

E o guerreiro Ulisses viajou submerso na clandestinidade. Voltavam-lhe as imagens em ondas negras a perseguirem seus passos: dos tempos de movimento estudantil no Rio de Janeiro, da passeata do Calabouço em 68, do assassinato daquele estudante, o Edson Luís... Como um filme, um carnaval em cascata fazia jorrar em mesclas o vivido, o transvivido e o imaginado: O Festival de Woodstock, a contracultura, a guerra do Vietnam, o tropicalismo, a bossa nova, o cinema novo, o irreverente jornal O Pasquim de toda semana...

Odisseu Ulisses tivera algumas uniões estáveis. E até um filho ele deixou em Itacaré, e a ele dera o nome de Telêmaco, mas nunca mais voltou lá para visitá-lo.

Seu pensamento dançava em torno de um nome musical: Helena, a musa impossível de sua poesia. Conheceram-se numa oficina literária na PUC. Ela sorriu para ele; trocaram palavras, e carícias e o mundo ganhou outra cor depois desse encontro. Mas um dia Helena ganhou uma bolsa de estudos e foi embora para Paris fazer pós-graduação em Semiótica. E então instaurou-se para ele o signo do vazio pleno de saudade.

Atualmente passava tardes inteiras em livrarias burguesas, dialogando com a poesia e a filosofia. Mas os livros ele só comprava nos sebos, claro! Vivia embriagado de leitura para poder suportar o tédio de enfrentar os bêbados das baladas paulistanas.

Mas Ulisses era filho de Obaluaê, a força da natureza que provoca doenças, se bem que também cura, por compaixão e misericórdia. E Odisseu Ulisses começou a delirar de tanta febre e desejo de compreender o seu estar-no-mundo. Com dificuldade, ele conseguiu subir a Rua Augusta e chegar à Av. Paulista. No cruzamento, não viu nada além do mar de Itacaré que inundava tudo. E um barco grego que se aproximava trazendo todos os seus heróis. No leme, Palas Atena disfarçada em Iemanjá. Ela, a amada deusa de olhos glaucos, aproximou-se, tomou-lhe as mãos, conduzindo-o até a embarcação.

E, pouco a pouco o barco se fez balão de sonho, foi subindo ao infinito, navegando na esteira do arco-íris até a estrela da utopia. Itacaré então se tornou Pasárgada.

 Maria Nazaré Laroca

 Juiz de Fora, 08/04/2021.


quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Adeus, Zequinha!



A José Furtado Pereira
In memoriam

O Poeta Zequinha, tão douto e tão simples, morava no sítio Shangri-la, em Guarani.

Nas nossas reuniões da AJL, eu lhe dizia sempre, quero ir lá, um dia, conhecer o seu paraíso particular... E o amigo sorria hospitaleiro... 
Mas o tempo engoliu os nossos dias... E o Poeta foi embora, para viver para sempre na Shangri-la do Céu... 
Lá, o nosso querido amigo vai continuar o ofício de declamar poemas com alegre sabedoria! E a turma que já se foi recebe-o agora com aplausos de saudade. São Pedro também gosta de poesia!

Vamos sentir sua falta, Zequinha!

Maria Nazaré Laroca 

Juiz de Fora, 12/10/2016.

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sábado, 17 de setembro de 2016

Joia rara






A Domingos Montagner

O retrato falado de um homem de bem se agiganta e aprimora-se a cada homenagem dos amigos e colegas de trabalho: alegria de viver, entusiasmo, simplicidade, generosidade, doçura, gentileza, integridade de alma, coragem...
Admirável seu último gesto quixotesco ao poupar a dama que desesperadamente tentava resgatá-lo dos braços do velho Chico...
Reaprendi com você, Domingos Montagner, que não importam os títulos e honrarias que inflam o ego e provocam admiração invejosa... O que importa é o sentimento: o amor que você plantou na memória do coração das pessoas.

Que brilhe sua luz nos picadeiros do Céu! 


Maria Nazaré Laroca
Juiz de Fora, 17/09/2016.
                                                                                               




terça-feira, 29 de abril de 2014

Brincando com Lobato. O lápis sem ponta



O lápis sem ponta

Estamos no País da Gramática, no palácio do verbo Ser. Diante de Sua Serência, quase não consigo escrever nada. Eu sou o lápis sem ponta, atrás da orelha da Emília. Estou trêmulo. Esforço-me, e a ponta só arranha o papel. 
A boneca é tão senhora de si, que nem presta atenção ao meu sofrimento. E eu só sou um lápis por causa do verbo Ser. Se não fosse ele, não existiria.
Ai, Emília, não precisa morder assim, para fazer a ponta, não adianta.
Não sei como Lobato conseguiu escrever esse capítulo.

Maria Nazaré Laroca
Juiz de Fora, 29/04/2014.

Emília na casa do Verbo Ser     
                     
Emília foi levada à presença dele e entrou muito tesa, com um bloquinho de papel debaixo do braço e um lápis sem ponta atrás da orelha. O venerando ancião estava sentado num trono, tendo em redor de si os seus sessenta e oito filhos — ou Pessoas dos seus Modos e Tempos. Parecia um velho de mil anos, com aquela cabeleira branca de Papai Noel.
— Salve, Serência! — exclamou Emília, curvando-se diante dele, com os braços espichados, à moda do Oriente. — O que me traz à vossa augusta presença é o desejo de bem servir aos milhares de leitores do Grito do Pica-Pau Amarelo, o jornal de maior tiragem do sítio de Dona Benta. Os coitados estão ansiosos por conhecer as ideias de Vossa Serência sobre mil coisas.
— Suba, menina! — respondeu o Verbo Ser com voz trêmula.
Emília subiu os degraus do trono, abrindo caminho a cotoveladas por entre a soldadesca atônita, e foi postar-se bem defronte do venerável ancião.
— Fale, Serência, enquanto eu tomo notas — disse ela, e começou a fazer ponta no lápis com os dentes.
O Verbo Ser tossiu o pigarro dos séculos e começou:
— Eu sou o Verbo dos Verbos, porque sou o que faz tudo quanto existe ser. Se você existe, bonequinha, é por minha causa. Se eu não existisse, como poderia você existir ou ser?
— Está claro — disse Emília escrevendo uns garranchos. — Vá falando.
Ser tossiu outro pigarro e continuou:
— Muitos gramáticos me chamam VERBO SUBSTANTIVO, como quem diz que eu sou a substância de todos os demais Verbos. E isso é verdade. Sou a Substância! Sou o Pai dos Verbos! Sou o Pai de Tudo!
Sou o Pai do Mundo! Como poderia o mundo existir, ou ser, se não fosse eu? Responda!
— Não tem resposta, Serência. É isso mesmo — disse Emília,
escrevendo. — Os leitores do Grito vão ficar tontos com a minha reportagem. O diabo é este lápis sem ponta. Não haverá por aí algum  canivete ou faca que não seja de mesa, Serência?
Não havia canivete, nem faca, nem nenhum instrumento
cortante naquela cidade de palavras, de modo que Emília só podia contar com os seus dentes. Mas tanto roeu o lápis, sem conseguir boa ponta, que ele foi diminuindo, diminuindo, até virar um toquinho inútil.
Acabou-se o lápis — e foi essa a verdadeira causa de o Grito do Pica-Pau Amarelo (jornal que aliás nunca existiu) não haver publicado a mais sensacional reportagem que ainda foi feita no mundo. O Verbo Ser falou muita coisa de si, contando toda a sua vida desde o começo dos começos. Disse que já havia morado na cidade das palavras latinas, hoje morta.
— Naquele tempo eu me chamava Esse. Depois que a cidade latina começou a decair, mudei-me para as cidades novas que se foram formando por perto, e em cada uma assumi forma especial. Aqui nesta tomei esta forma que você está vendo e que se escreve apenas com três letras. Na cidade de Galópolis virei Ètre. Em Italópolis virei Essere. Em Castelópolis sou como aqui mesmo.
— Então foi em Roma que Vossa Serência nasceu?
— Não, menina. Sou muito mais velho que Roma. Antes de mudar-me para lá eu já existia na cidade das palavras sânscritas; e antes de ir para a cidade das palavras sânscritas, eu já vinha não sei de onde. Perdi a memória do lugar e do tempo em que nasci, embora esteja convencido de que nasci junto com o mundo.
(Emília no país da Gramática - Monteiro Lobato)

quinta-feira, 13 de março de 2014

Mercearia da Mercedes





Que laços enlaçam o deus romano Mercúrio, o mercado e você?

Saio da teia prática da sincronia lexical e mergulho no misterioso túnel diacrônico cavado pela Filologia. A viagem surpreende a cada curva semântica. Primeiro encontro o céu do latim merere (merecer) e quase ouço um canto gregoriano ao fundo...

Não sei se tenho mérito para merecer este encanto, mas o fato é que a raiz mer(c) se destaca como uma borboleta sem cerimônia e convida-me a conhecer um pouco da família cognata. E, apressando-se, ela se une ao prefixo com- e então se projetam, no cenário da memória, imagens de comércio, comerciante, comercial, mercado, mercearia, mercador... campo semântico regido por Mercúrio, deus do comércio e da comunicação. 

E eis que, gentil, surge Mercedes, nobre nome que não fica à mercê dos mercenários que pululam na arena da mediocridade mercantil. Então lhe agradeço num galanteio francês: merci, Mercedes!

Agora pergunto ao meu eventual leitor: e vossa mercê? Perdão, e vosmecê, e você? 

Você sou eu, somos nós. Precisamos desse intercâmbio civilizatório. O espírito merece uma boa merenda recheada de cultura e arte. Afinal somos todos Mercedes.

Maria Nazaré Laroca


Guarulhos, 13/03/2014.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

A morte da espatódea





Spathodea campanulata, seu nome científico. Tulipeira, bisnagueira, árvore de tulipas... Da África Central aos jardins públicos do Brasil, daí também o nome tulipeiro-da-áfrica.
Uma árvore carnavalesca. Ornamental, imponente. Nota dez no quesito adereço: de um alaranjado gritante e divertido.
As suas flores chamadas bisnaguinhas fazem a alegria das crianças, pois permitem esguichar o néctar qual uma arma de brinquedo. Dizem que tal líquido é uma substância alucinógena, nociva a pássaros e abelhas... mas não pesquisei o assunto.
Hoje de manhã, a rua em frente à praça estava interditada como em um acidente de trânsito. Horrorizada, vi os despojos da árvore assassinada; tudo devidamente cercado por uma faixa da prefeitura. O tronco decepado ficou lá em silêncio incompreendido, ao lado de uma exuberante amendoeira que fingia não perceber nada.
O chão estava coberto de tulipas como um tapete de atrevida alegria.



Maria Nazaré de C. Laroca
Juiz de Fora, 1º de fevereiro de 2013

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

No reino das mil e uma palavras sem fim


     Luma é uma palavra luminosa e feliz que vive no Reino das Mil e Uma Palavras sem Fim. Ela é também uma palavra poética, de constituição lítero-musical, e tem ainda a leveza e a mobilidade das fadas que habitam em reino próximo. Quando Luma nasceu, seu pai, ou Patro, como era chamado, percebeu que a filha era especial, dada à sua auréola resplandecente.
Luma cresceu nesse reino construído de palavras, versos, poemas e canções. Era poeta e compositora e servia a todos com graça, levando, com voz maviosa, a alegria de suas canções a vocábulos solitários e perdidos de si mesmos. Trabalhava também como mestra de palavrinhas musicais desafinadas, aprimorando-as para o futuro.
De vez em quando, de madrugada, Luma saía a colher estrelas que, com cuidado, acomodava na dobra da túnica.  Só voltava para casa quando a manhã raiava e, então, guardava a colheita da noite num jarrão de puro cristal para ver as estrelas tremeluzirem.  Por que agia assim?
Ah! Em visita aos amigos, na hora de se despedir, num abraço demorado, a suave Luma, discreta e amorosa, colava no peito do amigo uma estrela luminosa que curava quem estava doente, animava quem estava sozinho, iluminava quem estava no escuro, demonstrando assim o seu carinho. Aos amigos mais distantes ela enviava uma estrela-pensamento. Por isso as saídas noturnas para pescar estrelas...
Ainda frequentava o templo de Verbum, o sábio sacerdote que lhe desvelara o dom especial de comunicar-se com seres de outros reinos e dimensões.  Havia, porém, uma regra a que Luma não podia desobedecer. No dia em que ela recebeu o grau máximo de Mestra da Música e da Poesia simultaneamente, Verbum  ordenara-lhe solene:
- Leia em voz alta o juramento do pergaminho sagrado:
“Jamais ultrapassarei a fronteira da Poesia e do Encantamento.”
E assim foi feito.
Desde aquele dia, entretanto, Luma caiu em desassossego, pois, além de independente e destemida, era bastante curiosa. O que será que existe além daquela ponte? Sua mente dançava ao ritmo das perguntas que se avultavam. O vento travesso sussurrava ao ouvido das flores, espalhando aquele segredo de polichinelo, pois todo mundo já sabia; a última a descobrir foi ela...
Para lá da ponte começava o reino dos homens! E agora Luma queria saber como era sentir-se humana. Devia haver alguém como ela naquele misterioso reino de sombras e névoas. E a Luma-palavra cismou de encontrar a Luma-menina, seu referente naquele mundo meio primitivo!
Do outro lado do rio da vida, a Luma-menina respondia pelo nome de Maria da Luz, ou, mais propriamente, Luz, como gostava de ser chamada. Luz era o referente de Luma; também era ela doce poeta, cantora e compositora, mas com alguns atributos diferentes como sentimentos de tristeza e solidão de vez em quando.
Luma conhecia apenas a alegria; nunca havia chorado antes de atravessar aquele segredo sinalizado pela ponte proibida.
Quando Luma abriu os olhos, estava dentro de uma imponente biblioteca de uma metrópole daquele mundo desconhecido. Luz acabara de abrir um livro de poesia e lá estava Luma, levantando-se e estendendo a mão a Luz:
     - Olá! Sou Luma, muito prazer em conhecê-la.
Surpresa, mas acostumada a lidar com palavras, Luz ficou encantada com aquela aparição inusitada:
     - Oi, sou Luz ... Você mora aí nesse livro?
    - Não, menina! Só usei o livro como meio de transporte para poder me aproximar de você.
   - Nossa! Que legal! Você me conhece, então?!
   - Como não? Sei tudo sobre você! Quero ser sua amiga...
   - Claro, claro... mas posso saber como você me conhece? De onde você veio? Quem é você?

    - Calma, Luz! Uma pergunta de cada vez!
E, assim, pacientemente, Luma foi esclarecendo a curiosidade de Luz. Contou-lhe sobre sua vida no Reino das Mil e Uma Palavras sem Fim, sobre o juramento feito a Verbum e a sua posterior desobediência a ele.
Luz, por sua vez, narrou-lhe sua vida algo monótona e triste até então. Falou-lhe de suas preferências literárias e musicais, de sonhos e aspirações. E descobriram-se tão parecidas: Luma e Luz, quase idênticas. Na verdade eram lados da mesma moeda poética.
E, assim, todos os dias Luz e Luma encontravam-se na grande biblioteca, falavam sobre tudo, trocavam poemas e aprendiam a conhecer-se mutuamente. Luz resplandeceu com a alegria de Luma; esta cresceu em sabedoria, ao experimentar a tristeza de Luz, uma nostalgia que às vezes chegava de mansinho com o entardecer.
E o tempo foi passando. Luma praticamente passou a morar na biblioteca e começou a descobrir o lado sombrio daquele mundo. À noite, podia ver centenas de palavras mal-encaradas saindo para a vida noturna daquela cidade fascinante e perigosa. Sentiu-se sozinha e triste. Luz não podia fazer-lhe companhia o tempo todo, pois era humana, tinha que estudar, cantar no coral, fazer as tarefas de casa; e tudo isso era severamente vigiado pela mãe.
Houve uma noite em que Luma chorou de saudade de seu reino, e esse forte sentimento de tristeza, pela primeira vez experimentado, envolveu-a em uma nuvem pesada e sufocante. Em sincronia com ela, Luz começou a perder o entusiasmo pela poesia e parou de sonhar... E ambas estavam ficando cada vez mais sem brilho e sem cor: adoeciam de nostalgia, reféns de uma solidão galopante.
Por outro lado, no Reino das Mil e Uma Palavras sem Fim, Patro e Verbum, preocupados com o desaparecimento de Luma, foram buscar socorro em outro reino bem próximo onde todas as palavras eram felizes.
Era um reino de céu esmeraldino: onde as estrelas verdes cantavam um hino à fraternidade universal. Foram recebidos carinhosamente pelo Esperanto, o mentor espiritual daquele reino de paz. Tanto Patro quanto Verbum há muito sabiam conversar na língua usada naquele reino, por isso foi fácil o contato com aquelas palavras fraternas.
      Depois de algumas horas reunidos com o Mestre Esperanto, Patro e Verbum voltaram para casa cheios de esperança. O Esperanto prometera resgatar Luma e Luz, mostrando-lhe toda a beleza e finalidade da língua internacional criada por Zamenhof.
E assim foi feito. No dia seguinte, Luz já tinha nas mãos o Fundamento do Esperanto e mostrava feliz o seu tesouro para amiga Luma. Esta então se lembrou de já ter ouvido falar do belo reino de Esperantio, onde todas as palavras são felizes por poderem comunicar-se facilmente com todos os outros reinos próximos ou distantes...
E a alegria voltou ao coração das duas. Elas tinham agora muita coisa bonita para aprender e compartilhar com o uso do Esperanto.
Então, em outro reino não muito distante, onde flores, passarinhos e bruxas convivem na mais santa harmonia, a Florzinha escritora dá um longo suspiro e fecha o livro onde habita a história que ela acabara de escrever.
Ah, que vontade ela tem de conhecer de perto aquelas duas almas irmãs... Ah, que vontade de aprender essa língua verde da fraternidade!
 E como, juntas, as três iriam brincar de criar por aí...


Leia este conto em Esperanto em Beletra Almanako:

http://www.beletraalmanako.com/boao/ba12/index.html
                                              
  Maria Nazaré de Carvalho Laroca